quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A Sofia dos duzentos anos


Hoje dou-me gratuitamente, sem preço me ofereço, livremente.
Reparto pedaços de mim como a flor que espalha pétalas ao vento, dividindo sementes.
E não espero que a primavera brote de novo mais do que um simples sentimento.
Dou-me assim então, livre de pretensão como quem morre sereno não esperando salvação.

Quarta feira não passa de um dia. Como se chama? Sofia.
Os dias são lentos quando não dás. Pesadas horas, relutantes, que o tempo te trás.
Olhos azuis clarinhos, alegre, idosa dos carinhos, sorridente como se não estivesse doente.
Vens dar-me nosso senhor? Fixa-me atenta. Não, é a sopa que também alimenta.
Tá quentinha? Não gosto de coisas frias, bastou-me os molhos de lenha às costas naqueles dias.

Quantos anos me dás? Não tos dou já os tens, mas querias mais do que os teus oitentas e tais?
Tenho duzentos, sim duzentos anos e vê como sou bonita, aqui sentada, torcida, garrida...
Endireita-me as costas pela alminha dos teus. Vê estas mãos tão inchadas. A papa está fria mas é doce, docinha, humm…

Quantas vidas viveste Sofia? Foi assim de repente ou dia após dia?
E este sorriso sempre foi teu? Ou herdaste do teu pai que dizes ser eu?
Duzentos anos, duzentos anos… vida vivida, sofrida, sorrida, suada, revirando coisas que a memória ainda guarda.
Sabias que a Mariazinha da dois cozia belos bolos de massa sovada? Oh era coisa aprovada.
A sua mãe ainda cose aqueles famosos bolos? Perguntam ao filho os esganados, os tolos.
Os fornos apagam-se nestas idades, resta apenas um rosto rosado queimado de saudades.
E a Conceição da seis? Coitada, ainda chora o irmão, foi pró calhau às lapas num dia de verão.
Sempre se trocava por um saco de farinha, apareceu três semanas depois sem cabecinha.
Enterraram num lençol o coitado rapaz. E a mãe não o viu, não o tocou. Isso não se faz.
Estava cheio de bichos, conversa do regedor. Uma mãe tem de chorar o filho para sarar sua dor.

Sabes, quando começo a falar nunca mais me calo. Fala, fala que não me ralo.
E tu, tens filhos ? Sim quatro, dois rapazes e duas raparigas.  Uma delas também se chama Sofia. Eu sabia, eu sabia. Ela é mais nova ou mais velha do eu?
É muito mais nova, uns bons anos…
Pois, pois…
Vens dar-me Nosso Senhor?
Não. Venho dar-te um bocadinho de mim, Sofia dos duzentos anos.

© Altino Pinheiro


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