terça-feira, 24 de setembro de 2013

Eternos ilhéus



Em solidão madrasta, escondo-me no meu eu mais recatado, aquela parte que me escapo de mim. Visto-me de basalto rochoso e mergulho no murmúrio do meu mar profundo como uma espada que trespassa um corpo.
Assola-me a lava de medo como o trovão sentido pelo vento, que teima em não ser quebrado.

Venho á superficie receber a inspiração para de novo mergulhar em mim, numa exalação que se molda em tempestade.
Não sou mais do que pedra viva, que fala, que prosa, que pensa…
Não sou mais do que um ilhéu perdido na pangeia oceânica, que o nevoeiro da ilusão esconde da iluminação divina e dos sois que me querem abraçar.  
Sou o peso que garajaus e gaivotas não conseguem carregar, em seus deambulantes voos desorientados por uma bússola que queria minha.

Rogo que um naufrago perdido me descubra e me habite, tal casamento até que a morte o separe, que me usufrua por inteiro bebendo água fresca das minhas nascentes mais puras, e não se sinta prisioneiro de mim.
Que me descubra um pirata porque também tenho tesouros, como as verdades que se dizem e os sentimentos revelados, guardados nas  profundas grutas do meu ser.

Sou por acaso um ilhéu esperando em sorte encontrar outro ilhéu, para dos nossos penhascos, juntos vislumbrarmos o imenso horizonte da liberdade.


© Altino Pinheiro



domingo, 22 de setembro de 2013

Bocarra

O verbo é palavra
na boca relógio.
Tic tac, tic tac…
Voam as horas
em frases e letras.
Doce mente,
grado amargo,
ciência parca.
Sabe o que diz.
Perde por dizer.
Não se cala,
não sente.
Move-se com poder,
ignora a fala,
boca com sede,
fala a correr.
Língua que arde.
É teu hábito,
é teu hálito.
Tic tac , blá blá blá…
Tua bocarra
passa o tempo
sempre em farra
sem nada dizer.
Calando a graça
do teu lindo ser

Fevereiro 2013

© Altino Pinheiro



Um Bocadinho de Deus
















Perguntei-me a mim um dia
Derradeira, dura, justa questão
Instante subtil,  vital;
Quem és tu afinal?

Com respostas fartou-me a vida;
Ivasivas, corriqueiras, sorrateiras.
Mentirosas, curiosas, questionáveis,
furiosas, religiosas, banais…
Respostas vãs, assombram o meu ser;
elevado, pensador, cómico,  superior...

És terra e carne frágil, arma quântica,
belo burro genial, molécula filosófica.
E és evolução, sem principio meio e fim,
átomo em revolução, um caos universal…
Um bocadinho de Deus, afinal.

Maio 2013

© Altino Pinheiro

Casa de gente que morre


O telhado de barro velho
com limbos cinza branqueados,
abrasados pelo sol da estação.
Pingados de chuva outonal,
num arrepio de solidão
que se sente no beiral.

Nas soleiras e ombreiras,
a tinta desmaiada, atmosférica,
combinando com as janelas,
também mal pintadas,
de fracas cores amarelas.

No chão, folhas das vinhas,
ressequidas , quebradiças,
em tom creme acastanhado.
Misto de terra, lixo e pó.

Entro nas memórias,
na palpitação da lembrança.
Dos tempos fugidos,
do momento que corre,
na recordação de uma casa
cheia de gente que morre.


© Altino Pinheiro






Badamerda


Badamerda

Prós guerreiros feirantes
Prós diáconos amantes                                                                
Prós sussurros  da morte                                                                                
Pró diabo da sorte                                                                                

Badamerda

Prá economia de informação
Prás mamas da constituição 
Prós Políticos condecorados                                           
Prós litúrgicos consagrados
Prá vizinha atrás da janela
Pró vazio na Panela
Pró coveiro do povo
Prá galinha que come o ovo

Badamerda                                             

Prá democracia marmelada                                  
Pró que manda dar porrada
Pro sistema funcional
Prá educação laboral
Prá saúde moribunda
Pró estado que se afunda
Prá segurança que se furta
Prós filhos da puta
Prós que passam os avais
e prás outras coisas mais



Badamerda

© Altino Pinheiro

Mãe de Água

Flui baixa a ribeira
cingindo pedras lustrosas
redondas planetárias.
Leito ténue fraco
flácido como vida.
Margens areadas calcárias
num plâncton desmaiado
em fraqueza esverdeada

Água límpida num poço
corre ligeira à foz.
Reflexo de luz solar
Vai-se valetas e moinhos
dando de beber aos pastos.

Donde vens, onde nasces?

Água que cessa serena
preguiçosa no percurso
eterno,  circundante
num contorno de curvas
até ao mar.

Maio 2013


© Altino Pinheiro



Momento












Deixa-te envolver na luta, na rebelião,                                                
na manifestação da morte à memória.
Do activismo que apaga a recordação
do passado que não te leva à vitória.                                         

Deixa-te levar pelo movimento pacífico
que se debate pelo abate da ansiedade.
Da inquietação do futuro específico,
ladrão do teu sorriso disfarçado de idade

O que tens não é mais do que um momento.
O futuro e o passado são disfarces da ameaça 
que se fundem contigo como sentimento.
E entendes que só no agora tu vives em graça.    

Serralves, Maio 2013  

   © Altino Pinheiro              

sábado, 21 de setembro de 2013

Hoje sou um móvel


Hoje sou um pano de pó que passa leve e arrasta partículas mortas, leves, inertes, caídas num cedro envernizado que se afigura num móvel de quatro pés, de robustez aparente.

Porem sou o fogo que promete a certeza revelada em visão, a chama e a brasa deste pedaço de madeira e trapos já queimados dentro das gavetas tristemente trancadas.

Sou o ar que alimenta esta chama fascinante, que vai queimando as paixões do obreiro desta estrutura amontoada de tábuas, pregos e verniz.

Hoje sou a água que acode o cedro queimado, restos do móvel que arde na lenta combustão com pesar.  

E sou também o lápis revelado no carvão que traça o negro destino do pano de pó e da árvore que se projectou num móvel imóvel.

© Altino Pinheiro

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Entrilhas da Carla







Por onde anda este pedaço de mim feito livro?
Livre tão solto, como as páginas coloridas, sentidas, numeradas.
Onde andam os escritos de mim, tão raros, nostálgicos, prosaicos, finíssimos?
Que mundo saberá das coisas e coisinhas minhas, que fui pensando, guardando, amando?
Quem me sentirá, lendo-me inteira em frases leves como penugem de Priolo, preso num mato de silabas gramaticais.
Que línguas, que bocas,  prenunciarão um monte de palavras que colhi Entrilhas?

Carta a Carla Verissimo – O favor que o teu “Entrilhas” fez em acompanhar-me numa das mais importantes viagens da minha vida. Numa mochila de trapos, um confidente inspirador.

18 Agosto 2013

© Altino Pinheiro

Theater Café

 




Que lugar é este que para lá do rio manso, ligeiro, descobre-me na casualidade de mim e me diz entra.
Que faço eu no meio de tantos livros que não leio e que me apelam num fascínio delirado.
Quem terá escrito tantos livros impressos numa árvore que se fez papel, pedaços que preenchem este espaço e este tempo perdido no meio do nada onde as letras se bebem como um chá ou uma água Germeta.
Como serão aqui as noites de inverno junto a esta lareira, queimando páginas de romance, crime,  aventura, paixão, erotismo e ilusão, contidas, compactadas em soberbas estantes talhadas no meio de escritores, artistas, pensadores e pensantes…
Aqui o silêncio é de oiro como os títulos cravados em relevo nas capas de coiro macio, numa suavidade literária que o tempo não roubou.
Vejo os ilustres a entrar e a sair, vivos e mortos, a escrever, a ler coisas sérias profundas,  nada de tretas literárias, nada de pimbas paginadas.
E eu sentado à mesa numa cadeira de prazer deixo-me embriagar pelas palavras caríssimas, finíssimas de Shakespeare, Agata, Eucken, Marh e outros que não conheço…
Posso juntar-me a vós?
E em sussurro responde-me o tempo que é sábio; bem vindo, escreve-te em livro e deixa-te ficar aqui para sempre.


15.08.2013 - Beverungem / Alemanha 

© Altino Pinheiro

Multidão



Eis a multidão
Que se move apressada
Sem movimento
Nem propósito final 
Eis a finalidade
Que é fundamental 
À causa do esforço
Eis pois a agitação,
paradigma, complexo
uma leve sensação
um anjo com sexo
Eis a multidão.

© Altino Pinheiro







Até sempre Beverungen


Há uma ponte de arco em meia lua metálica que separa um leito, dois lugares um rio.Nas margens, plátanos e castanheiros altos escondem os pilares atijolados, onde patos bravos e mansos quebram o silêncio doce, pedinchando migalhas e pipocas em corridas desenfreadas, alguns rasando voo imperfeito pela superfície das águas verdes e calmas.
 Vejo as pessoas deste lugar diferente em cósmica tranquilidade, delicadamente abandonadas ao lazer, ao prazer. Na margem de cá um imenso campo relvado, ajardinado, bancos de jardim disformes na arquitetura, lindos, desconfortáveis. Na margem de lá observo as casas ordenadas como do paraíso se tratasse.
Vive gente lá dentro? Se sim têm bom gosto a julgar pelas sóbrias cores; verde alface, castanho madeirado, azul anil e outras que se perdem na definição e na ordem que se quer harmoniosa.
Há um cais pequeno sem barcos, e chega mais gente, mais pessoas e muitas mais bicicletas. Ouvem-se as vozes baixinho, sussurrantes, simpáticas, passeando pela passagem pedonal paralela ao rio. Um sobe e desce, entra e sai mais gente tranquila e mais  bicicletas, são tantas, imensas…. Como estará a minha? De pneus em baixo com certeza.
No meio do grande relvado despoluído de ruído, dois campinos deitados de cansaço ou marmaço. Talvez sesta , talvez sono. Há um enorme tronco polido a servir de banco, descanso dos gnomos , penso eu.
A mãe cansada deitada num banco enquanto o menino tenta rasgar o rotulo da garrafa de plástico sem água. Vai colocar na reciclagem filho; diria  eu ao Manuel ou ao António.
Na passagem de asfalto à minha frente, palco desta peça sem fim, desliza astuta em patins a senhora quase idosa a sorrir como a dizer-me; velho és tu!
À entrada do parque, se é que é mesmo, uma esplanada, guarda-sois, mesas e cadeiras de alumínio leve prateado, vendem-se gelados olá aqueles do coração que aqui são “Langnese”. Posso provar? Só provar para ver se são iguais aos de lá? Deixa-te estar, saboreia esta paisagem que daqui a nada ficas fresco.

Então distraio-me de novo pela beleza, agora humana, um kaiak vagueando calmo, em linha reta rio abaixo, é gira a remadora, não lhe vejo as pernas, tem bons braços para o remo.
E há uma casa ensolarada, majestosa, misteriosa, de madeira e pedra alaranjada, com muitas janelas brancas de vidros pequenos aos quadradinhos, nas soleiras imensos vasos retangulares, expostos com soberba, bem tratados, cheios de vida e flores vermelhas, todas vermelhas. Serão cravos?  Parecem-me…
Sentado em esquadro neste banco de costas verticalmente exageradas, fico escrevendo o que os meus olhos me descrevem deste lugar, que poderá ser somente visão.


20 Agosto 2013 

© Altino Pinheiro